Na aquela época em que era um adolescente escravo nos confins do Estado do Acre, em um local ermo de matas virgens e trilhas estreitas abertas em meio às matas intocáveis entre Plácido de Castro, Senador Guiomard e Bolívia; via-me preso como em um calabouço, ali aprisionado sem poder sair e sem esperança, ou expectativa de vida.
Surras ou pela manhã logo cedo, ou á tarde na boquinha da noite. Eram rotineiras as minhas doloridas e intermináveis pisas, entre o trabalho duro, comida pouca, tinha hora para beber um pouco de água, e só podia comer arroz e feijão se as metas focem alcançadas. Que metas eram essas?
Tiamos ali naquele lugar, no sítio comprado por meu velho pai; cerca de seis alqueires para roçar e plantar; porem eu era um garoto de 11 anos de idade não sabia usar as ferramentas e mesmo assim foi me imposto que pegasse um facão, e roçasse a grossa capoeira das cinco da manhã às oito da noite, nos dias de lua cheia. Só podia comer se o serviço fosse bom, e se o trabalho alcançasse seus objetivos. Cheguei, portanto ficar quase quinze dias trabalhando fraco, anêmico e sem poder comer arroz e feijão.
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Como sobrevivi?
Como uma criança de onze anos de idade encontra comida em meio à floresta, capoeiras e juquiras? Não existem alternativas; a fome era a minha companheira. Mais já estava acostumado á passar fome quando, a dois anos; um pouco antes de completar nove anos de idade fui expulso de casa e passei á morar nas ruas do Quinari, e nas roças próximas da cidade.
Deixei á Escola Veiga Cabral quando ainda estava na terceira serie do ensino fundamental, não pude mais ir á escola, pois não tinha casa, não tinha como lavar as roupas, e não tinha como comprar materiais escolares; por fim não tinha vida alguma ou esperança para mim.
Perambulei pelas as ruas de Rio Branco, e Senador Guiomard engraxando sápatos; por um ano e meio, até chegar a uma chácara no Quinari aonde me receberam e ofereceram um lugar para dormir. Tive que trabalhar de sol á sol para poder comer e ter uma rede para deitar. Não ganhava cachê pelo o dia de trabalho duro na roça, e nem muito obrigado nos fins de cada mês trabalhado. O que me ofereciam era comida água para beber e uma rede para dormir.
Eu era apenas um garoto lutando para sobreviver em meio à tempestade às duras provas que logo cedo, à vida me incumbiu de resolver. Tive fome ‘’pra-caramba’’! Olhava as outras crianças comendo, morrendo de desejo de dá uma mordida, de beber um pouco daquele suco de limão com açúcar, e até hoje depois de adulto, minha boca enche de água quando penso no charuto de arroz que era vendido na praça no centro da cidade.
Oh meu Deus como ali eu sofri; como foi imensamente difícil viver como criança aqueles dias de pura maldade e servir. Lembro-me que em um dia, eu garoto morador das ruas do Quinari, passava pela a Rua da Igreja onde minha família morava; e senti ali o cheiro gostoso da comida da Dona Laura, e lá eu parei morto de fome, me sentei frente a igreja, e depois frente ao portão, esperando receber um chamado e o oferecimento de um prato de comida, mais quando me viram; ‘’fecharam a porta’’.
Dali eu sai… Um pouco zangado, um pouco tonto, e com muita fome…
As lágrimas correram pelo meu rosto, eu chegava á soluçar; as pessoas passavam por mim e diziam, ‘’Olhem ali o filho do pastor, sujo, chorando, magrinho, com um saco nas mãos, parece mendigo’’, e passavam de largo, longe de mim. É eu fedia muito.
Hoje tenho trauma até mesmo do cheiro do meu suor, eu tomo cinco seis banhos diários estando calor ou frio.
Como eu fui parar nos confins da Amazônia na divisa com Brasil e Bolívia em meio à escravidão? Certo dia, meu velho pai e pastor evangélico; procurava-me pelos arredores da cidade; e alguém me encontrou e me disse; ‘’aqui em casa veio o pastor da Igreja te procurando’’. Ele disse que precisa de você o único filho homem dele, pois agora é dono de um sitio e vai cultivar a terra.
Os meus olhos de criança, se encheram de esperança, rasos d’água, corri ao seu encontro. Foi bem-vindo na casa de meu pai, após quase dois anos morando e sobrevivendo na rua.
Um único dia apenas; após, fui levado para o maior cativeiro da minha infância, setenta quilômetros de ónibus. Cinquenta quilômetros de caminhada á pé carregando trinta e cinco quilos nas costas, fardo pesado para um menino, até chegar ao cativeiro. Ali o que eu pensava ser amor de pai, vi no mesmo instante que cheguei se transformar no mais puro ódio, castigos e pisas começaram a ser rotineiras.
O lugar não tinha casa, não tinha plantações, apenas uma farinheira velha de palha aberta, e meio alqueire de capoeira da brava; o resto era mata fechada. Amanheci sendo taxado de vagabundo; moleque que precisava virar homem; deu-me um facão, me deu duas demonstrações de como amola-lo e, aos berros, me mostrou como usa-lo para derribar meio alqueire de capoeira grossa em um dia de serviço.
Meia hora de luta com o mato, os marimbondos me atacaram, correndo no meio do mato cai sobre a ponta cortada de um mato grosso pontiagudo de juquira e me furo. Sou obrigado retornar para o trabalho, sangrando as mãos, sangrando a barriga e com os olhos tapados de inchados. Á tarde, sem enxergar direito; erro a faconsada e dou um baita corte profundo na perna esquerda; gritos de dor, sangue para todo lado; nem uma ajuda, ou misericórdia.
Ao ver meu sangue espalhado pelo chão, minhas mãos arderem pelos calos estourados, às dores insuportáveis das ferroadas de marimbondos, desmaiei às 16h daquele dia infernal.
Acordei, estava escuro, lá longe no barraco um fogo aceso; o cheiro do feijão cozido, e um silêncio estarrecedor. Olhei para mim, e percebi que não tinha recebido nem uma ajuda, nem uma misericórdia. Ali estava o meu corpo cheio de formigas e coberto de mosquitos; peguei o facão melado de sangue e engatilhei até o barraco. Quando lá cheguei vi o velho deitado na sua rede, e de lá o ouvi resmungar em alto e bom som; sobreviveu? Aqui nestas terras quem não trabalha não come! Portanto tome sua água, tome seu banho e vai dormir porque amanhã as cinco têm o meu serviço e o seu para terminar!
Lavei o meu rosto dolorido, minhas mãos ferviam de dor; minha perna um talho de ver o osso, e o sangue ainda escorrendo pelo chão. Lavei-me, fiz ataduras e amarrei minhas mãos e minha perna. Deitei-me já sem forças e novamente desmaiei na rede. Quando acordei já era dia; o velho já estava trabalhando, achou que eu tinha morrido?
Fui trabalhar sem comer nada á dois dias; quando dou à primeira faconzada no primeiro mato á minha frente, ouvi sua voz me dizendo; ‘’já que não morreu; só poderá retornar para o barraco quando igualar o seu eito de mato com o meu’’. Foi o dia mais terrível da minha chegada ao inferno.
Roçando sem parar a juquira á minha frente; esmaguei as minhas mãos; emendei a hora do almoço, pois não podia comer; rocei sem parar preocupado com marimbondos, com febre, tremendo de frio, com dores terríveis no rosto e cabeça, batalhei até às 11 horas da noite, pois teria que comer naquele dia ou morreria de fome.
Quando cheguei ao barraco o fogo no fogão a lenha estava apagada, as panelas tapadas, e o velho dormia com sua espingarda no colo. Tomei meu banho, li um pouco a Bíblia Sagrada á luz da lamparina e dormi profundamente.
Acordei com gritos fortes e raivosos; dizendo-me; isso é um serviço porco, você não vai comer antes que corte direito todo esse eito que roçou anoite mal roçado! Vagabundo! E ai foi meu dia.
Morrendo de fome, desejando um punhado de arroz com feijão; passei á roçar todo o lugar aonde já tinha roçado; mais que devido à noite, não pude enxergar o que estava fazendo, apenas aonde começava e terminava o eito de mato.
As 11h terminei, retornei para o barraco, e só pude comer o bocado de arroz com feijão, após o velho pai deste menino de onze anos, ter inspecionado todo o serviço, o que demorou meio hora, momentos que fiquei escorado em uma madeira no terreiro angustiado, e com a minha alma estarrecida.
Em fim comi o bocado de comida.
Esses primeiros momentos foram apenas um retrato do que vivi na escravidão durante dois anos e meio; nos confins do Estado do Acre; divisa com a Bolívia e Brasil.
As lições; não serviram para mim em nada; só me mostrou á dor, o sofrimento, á fome, a angustia, a depressão, o ódio.
Meu nome é Maurício Filho, eu sobrevivi á escravidão cruel e verdadeira.
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